ConsideraçÕes sobre os exámes de grau
By Martín Fernández – Budo International jun 2.000 – Magazine Year XII nº 125
Em primeiro lugar, e antes de algum dos leitores me acusar de “heresia” por criticar um sistema de graus do qual participo, devo dizer que, na minha opinião, classicar ou atribuir etiquetas em qualquer das suas formas é, em princípio, um “necessário mal”. E o sistema tradicional de graus das Artes Marciais, não escapa a esta controvérsia.
Sentido primigénio dos dans nas Artes Marciais
No começo, o ensino das artes marciais como o Karaté-Dô ou qualquer de seus predecessores (Tode ou Okinawa te, Chuan fa, etc.) era realizado com um marcado carácter individual, ou bem em pequenos grupos ou clãs familiares.
É por este motivo que um sistema de classificação dos praticantes por graus ou níveis não tinha razão de ser, posto que a metodologia era a seguinte: o aluno confiava cegamente em seu Mestre e este não ensinava conteúdos de um nível superior até o discípulo não ter dominado convenientemente tudo o que já lhe fora ensinado. Por isso, poderíamos dizer que a única classificação existente era a do seu progresso em relação consigo mesmo (a ideal e mais honesta). Entretanto, tomando como referência o Karaté, quando este passa ao Japão surge como método de adestramento colectivo nas universidades, adoptando-se então uma estrutura de ensino muito influenciada pelo sistema militar e escolar do país do sol nascente. Uma coisa parecida aconteceu no resto da Ásia, e é com estas mudanças quando se faz patente a necessidade de um sistema de classificação de nível dos praticantes, ficando assim estabelecidos os exames de grau, para poder avaliar o progresso do aluno em relação com o domínio de uma série de conteúdos de cada cinto ou grau. A partir daí, a avaliação do ensino em vez de ser do seu progresso em relação consigo mesmo, -como antes disse- passou a ser a do seu progresso em relação com os outros.
Resumidamente: O sentido original dos exames de grau surge da necessidade de fazer estandar o ensino e facilitar o trabalho do professor, permitindo-lhe assim classificar os elementos que vai ensinar, em função do grau do aluno, posto que o grau determina o tempo de prática dos praticantes.
Para finalizar este capítulo, a meu ver, o maior valor destas “etiquetas e/ou classificações”, é que servem como orientação sobre a antigüidade dos praticantes, mas nem sempre são uma garantia do nível que é-lhes suposto. E isto por que, se bem há muitos que em seu dia foram dignos merecedores deste reconhecimento, conforme o tempo foi passando foram caindo em torpor, desonrando assim o preciado atributo. Por isso, um bom budoka deve respeitar os graus e a jerarquia, mas não dar nada por suposto e treinar com exigência, tenha a quem tiver a seu lado ou à sua frente.
Credibilidade dos exames de Cinturão Negro
Os exames de grau, especialmente no âmbito institucional como: Associações, Federações ou outros; costumam padecer uma série de circunstâncias que por vezes podem fazer-nos duvidar da sua equanimidade. Ainda que não sempre generalizável, costuma ser frequente que uma mesma norma de exame sirva para diferentes estilos ou escolas dentro de uma mesma colectividade. É por este motivo que devem de estabelecer-se claramente os conteúdos, meios e actividades mais idóneos, com os quais avaliar e depois classificar os praticantes, deixando uma maior liberdade na elaboração e realização do exame, de maneira a cada pessoa poder demonstrar por meio do trabalho característico do seu estilo, possuir o adequado nível técnico para um determinado grau. De outra maneira, se o padrão do exame oficial é demasiadamente rígido, pode beneficiar aqueles que mais se correspondam com essa ideia de trabalho, em detrimento do resto. Já é bastante difícil discernir a relação real entre a potencialidade de uma pessoa, isto é, o que possa chegar a realizar e o que realmente mostra, portanto, às vezes é possível que a classificação final não seja justa, posto que influem muitas variáveis internas e externas, de índole objetiva ou subjetiva, que fazem com que a tarefa de atribuir um grau resulte muito difícil e não deva de ser tomada à ligeira. Ainda mais, se a pessoa que não passa em um determinado “Grau ou nível” tem de tornar a pagar para um novo exame, isto faz-nos duvidar do verdadeiro valor desses graus e dos interesses destas organizações.
Premisas básicas dos
exames de grau
Para um sistema de graus ser respeitado por todos, deve ter o menor número de pontos fracos em suas normas e ulterior acção, e cumprir com uma série de premisas básicas, a saber:
– Validez. Que o exame avalie realmente o estabelecido como importante no mesmo, ou seja: o aspirante deve saber exactamente os pontos importantes que deve demonstrar. Da mesma maneira, o examinador tem de conhecer as diferenças e peculiaridades mais importantes de cada nível.
– Fiabilidade. Que o exame seja independente do momento ou da circunstância em que se realizar. Este ponto costuma ser o mais questionado, já que os praticantes centram sua atenção na prática do programa estabelecido, deixando de lado aqueles conteúdos importantes da prática quotidiana.
– Objetividade. O resultado deve ser independente das pessoas que superam o exame e, no possível, dos juizes que formam o tribunal. Nos resultados não influirá o número de examinados, nem outros factores que não sejam de natureza meramente técnica.
– Adequado grau de liberdade e de adaptação às normas e programa de exame. De maneira que cada pessoa possa demonstrar sua capacitação de acordo com sua fisonomia, linha técnica ou estilo e o que ele considere mais importante na prática da sua arte.
– Idoneidade dos examinadores. Para manter a credibilidade de um sistema de graus é muito importante que aqueles que são encarregados de avaliar e qualificar sejam mestres com um reconhecido prestígio e que seus graus e titulações sejam fruto da prática séria e continuada através dos anos. De outra maneira, quando em ocasiões estes graus são devidos a outros méritos diferentes àqueles da prática e trajectória técnica de uma pessoa, deixam de ser respeitados e portanto os graus por eles atribuidos perdem credibilidade. Ser director ou similar não deve facilitar a consecução de graus ou titulações de índole técnica ou profissional. Em resumo, se não se exige uma grande preparação dos juizes ou examinadores, carecem de critério para emitir uma classificação justa que seja aceitada e respeitada por todos.
Supravaloração dos graus, dans ou níveis
É um comentário habitual de muitos budokas manifestar que é atribuida excessiva importância à consecução de estes graus, sendo este o único objetivo de alguns praticantes. Até tal ponto que algumas pessoas só buscam satisfazer seu ego e demonstrar ser mais que outros praticantes, através de exteriorizar seu grau ou lugar que desempenha. Não obstante, estas pessoas há muito que deixaram de usar o keikogi (roupa de treino), substituindo-o às vezes por outro uniforme menos comprometido: “casaco e gravata”. Aqueles que são da minha mesma opinião, não é que pensem que não devam de existir gestores ou directivos, mas pelo menos tem de ficar bem esclarecido o papel de cada um e não confundir a posição que ocupam em suas funções, com o verdadeiro conhecimiento empírico de uma arte marcial. Máxime nos casos em que estas pessoas sejam as encarregadas de avaliar e classificar a atitude e aptidões de outras pessoas, posto que, se não treinam com sinceridade, tratando de superar-se a si mesmos, mal podem enjuizar, arbitrar ou classificar outros que, com seus defeitos e suas virtudes, continuam buscando incessantemente melhorar o nivel técnico e sua condição humana. Como podem ser juizes em exames de alto nível pessoas que esqueceram o que é um hematoma ou o encanto de sentir a fatiga e o esforço neles próprios? Por isso temos de ser realistas e não atribuir-nos um nível que talvez não temos. Com isto, não quero dizer que não existam pessoas na cúpula de Federações ou de Associações que continuam em activo e reconhecem suas limitações, mas lamentavelmente estas pessoas não abundam. Por isso, aqueles que trabalham incessantemente devem dar a conhecer suas obras de forma que pouco a pouco sejam tidas em conta e possam proporcionar seus conhecimentos a quem tem sede dos mesmos.
Os “Dans, graus ou
níveis”. Frutos caducos
ou perenes?
Para responder a esta pergunta apresentada alegoricamente, utilizarei um belo aforismo que diz: “O Karaté-dô (ou outra arte) deve ser como um caldeiro de água quente, o qual é preciso manter ao fogo para a água não esfriar”. Da moral do aforismo se deprende que uma pessoa que tenha obtido um determinado “grau ou nível” deve continuar com uma prática sincera e exigente, a fim de preservar e melhorar as capacidades e virtudes que um dia fizeram-na merecedoira desse reconhecimento.
Não sendo assim, que valor pode ter um 3º, 4º, 5º ou 6º Dan? Por acaso temos de nos conformar com viver dos êxitos do passado? Não é infantil pensar, que possuir um determinado grau nos garante frente aos outros um determinado nível, uns conhecimentos, ou uma superioridade manifesta? Quem pensar que estas classificações garantem a excelência técnica para toda a vida ou é um ignorante ou então um arrogante, ou ambas coisas. E apesar de não ser minha intenção ofender ninguém, que qualificativo merece o indivíduo que praticando com um oponente de grau igual ou inferior se queixa de que este ataca ou defende com excessiva força? Haverá quem diga que exagero, mas estas situações existem, especialmente naquelas pessoas que em seu dia tenham podido ter um certo nível técnico que esqueceram manter e que, conforme foi passando o tempo -que age lento mas seguro- viram como aqueles que vinham atrás os superavam amplamente, deixando-os em evidência. É triste ver como estas pessoas vão progressivamente afastando-se do caminho correcto e, obstinadamente, alguns querem fazer valer sua posição jerárquica. Mas os “graus, níveis ou dans” não têm poderes ocultos e estas pessoas, no pior dos casos, acabam por deixar de treinar, ou aparecem de vez em quando para mostrar o cinturão negro e assim consolar-se do seu declínio consentido. A ninguém deveria surprender ter na prática dificuldades perante uma pessoa de menor grau, devido a que aqueles que ainda estão escalando por um sendeiro abrupto se aferram com unhas e dentes. Entretanto, quem já se vê no cimo relaxa-se e em seu descuido pode chegar a cair, sofrendo as consequências. Por isso, aqueles que percorremos o caminho do Budô não devemos deixar-nos enganar pela “falsa segurança” que podem transmitir graus, títulos ou êxitos obtidos, por que estes podem ser um meio para ajudar-nos a evoluir, mas não um fim em si mesmos.
A Titulitis, uma
doença endémica
Com este enunciado e voltando a abusar da metáfora, quero referir-me ao problema que surge quando se dá mais valor aos graus ou títulos que aos conhecimentos que verdadeiramente estes proporcionam. É triste ver como algumas pessoas fixam suas metas em conseguir tal ou qual titulação, por o simples facto de aparentar ser igual ou mais que outros. De facto, à hora de realizar um curso, a decisão de muitas pessoas depende de se este inclui um título ou diploma acreditativo, em vez de avaliar se pode ajudá-las a melhorar seu nível, ou se pode proporcionar-lhes algum conhecimento.
Até tal ponto que muitos praticantes e instrutores dedicam toda a sua prática àqueles conteúdos que devem demonstrar no exame de grau. Por causa disto, pelo caminho ficam grande número de trabalhos sem realizar e matérias nas que aprofundar, realmente importantes, mas que não aparecendo no programa do exame são desatendidas. Quanto tempo se perde em preparar alguns exames de grau, quando estes devem de ser a prática quotidiana de cada um de nós! Quantos aspectos importantes são omitidos, são esquecidos ou simplesmente desconhecidos, baseando o aprendizado na consecução de uns determinados graus, títulos, ou êxitos esportivos? Há quem pense ser muito jovem para aprofundar na arte, outros pensam ser já de muita idade ou levar muito tempo trabalhando de uma determinada forma, para questionar ou voltar a pensar no sentido da sua prática ou ensino. Ainda sabendo isto, ou intuindo que estão na direcção errada, pensam que já é muito tarde para renunciar à segurança do que é-lhes conhecido, à proteção do sistema estabelecido, e renunciam a outro tipo de prática que pode ser mais sacrificada, conforme se vir, mas que contem a recompensa e a satisfação de acreditar no que se faz e, chegado o caso, no que se transmite aos alunos. E de tudo isto, o que mais me incomoda é quando se perde o entusiasmo por melhorar, tanto na nossa prática como nos conhecimentos teóricos que podem ajudar-nos a orientar correctamente nosso treinamento, posto que, não só se trata de praticar, como também de o fazer correctamente. No entanto, algumas pessoas apenas treinam mais ou utilizam os livros quando querem obter alguma titulação e vêem-se precisados disso. O que havia de ser da medicina se os médicos após obter suas titulações perdessem o interesse por aumentar seus conhecimentos, por melhorar suas técnicas de cirurgia ou investigar melhores tratamentos? Então, se consideramos que as artes marciais são uma arte e uma ciência, por que não praticá-las de uma forma exigente e responsável.
E para finalizar, gostaria de citar a ‘Hipócrates’ numa frase que se adapta perfeitamente à ideia que quiz transmitir nestas linhas: “A vida é breve, a Arte longa, a ocasião fugaz, vacilante a experiência, e o enjuizamento difícil”.