KARATE-DO: meditaçÕes para a prática
Este artigo é uma meditação em voz alta acerca da maneira correcta de abordar, da forma tradicional, a prática do Karate-dô ou qualquer arte do Budô. E para isso, nada melhor que esclarecer alguns pontos essenciais na dita prática. Também, é desejo do autor que estas linhas sirvam para considerar seriamente os valores e atitude na prática que fazem a diferença entre o Budô e o desporto em geral, sem desprezo para os benefícios do mesmo.
1. Dôjô versus Ginásio
Na actualidade, quando um estudante de Karate-dô se dispõe a ir treinar diz –vou ao “ginásio”; mas esta palavra “ginásio” é entendida de forma diferente se diz: –vou ao “dôjô”, posto que, em japonês, “dôjô” é o lugar onde se realiza a Via, isto é, onde uma pessoa estuda a técnica de uma arte, ao mesmo tempo que forja seu carácter, controla e canaliza suas emoções e instintos e evolui como ser humano. Tudo isso utilizando como instrumento a técnica da arte que tenha sido escolhida.
Entretanto, quando uma pessoa diz: –vou ao “ginásio”, geralmente isso implica actividades ou atitudes lúdicas, recreativas ou hedonistas e, no melhor dos casos, buscam uma melhora da saúde ou da forma física. Portanto, uma vez meditado sobre estes dois termos <ginásio-dôjô>, o estudante de Karate-dô, ou outra arte, poderá indagar-se por qual deles decantar-se. Para um “budo-ka” ou artista marcial a escolha será clara, posto que, qualquer benefício realmente enriquecedor que possa ser obtido por meio das actividades de “ginásio”, pode ser obtido amplamente através da prática de uma arte como o Karate-dô. Não obstante, o caminho ao invês não é possível, já que, qualquer arte do Budô comporta benefícios e entra em campos nos quais o desporto não tem cabida.
2. A atitude do estudante de Karate-dô
Quando um estudante de Karate-dô chega ao dôjô, deverá ter esclarecido que alí não só vai exercitar-se fisicamente, pois no treinamento, além do corpo deve incluir a mente e o espírito. Estos três factores são indissociáveis e devem ser treinados de uma maneira integral; para isso é necessária a total atenção e concentração nos nossos actos; máxime quando deles pode depender a nossa vida ou a integridade física. É o que os mestres japoneses denominam o “Shingitai”. O shingitai refere-se às três qualidades que devem manifestar os danes e kyus: shin (o espírito, o carácter), gi (técnica na arte praticada), tai (elementos corporais). Outra interpretação seria: shin (céu), gi (terra) e tai (homem); shingitai, reunir os três elementos.
Esclarecimento: quando realizamos um gedan-barai é evidente que é uma acção física, mas, o realmente importante não é a acção muscular mas sim a atitude e a intenção com a qual executamos a técnica, já que esta só será efectiva se realmente está involucrado todo o nosso ser. Como pode ser isto possível? Pensemos como é possível desenvolver técnicas eficazes, -se durante a prática: nos distraimos e falamos com os colegas; se pensamos e ocupamos nossa mente em coisas alheias à prática; se esperamos com ansiedade as pausas ou descansos e além disso as desperdiçamos falando; se nos preocupamos por quanto falta para finalizar; se tememos que nos calhe um parceiro que trabalha muito forte; se pensamos -exteriorizando-o ou não, “uffa, outra vez este kata…”; se duvidamos da metodologia do Sensei (aquele que viveu) ou mestre e, em resumo, qualquer tipo de pensamento ou acção que nos afasta e distrai do sentido original da prática do budô.
Por conseguinte, os estudantes deveriam adoptar as seguintes normas:
– Evitar as distrações e interrupções sem motivo justificado.
– Realizar rapidamente e sem supérfluos comentários as mudanças de parceiro, para não romper a harmonia e o fluxo energético.
– Retirar-se para um lado do tatame no caso de se sentir mal; voltando ao mesmo quando se sentir melhor.
– Esperar as pausas (yame) ou os descansos (naore) para perguntar ao Sensei as dúvidas.
– Pedir a autorização do Sensei para treinar e para sair da aula.
O estudante sincero em todo momento praticará com os cinco sentidos em cada gesto, em cada acção ou em cada uma das técnicas que realizar; com a ideia de ser esta a última vez que pratica a arte e querendo saborear cada momento, cada instante, cada gesto. Da mesma maneira, nos exercícios com parceiro ou com colegas dará com entusiasmo o melhor de si mesmo, com entrega e decisão em suas defesas e ataques; procurando a harmonia e o progresso mútuo.
Para isso, um karate-ka ou praticante do budô deverá evitar as seguintes condutas ou atitudes.-
– Praticar sem motivação e sem tentar superar-se dia a dia.
– Falar, distrair-se ou não estar atento durante a prática.
– Correr o risco de se lesionar ou magoar os colegas por satisfazer seu ego, por ira, raiva, temor, etc.
– Que o grau ou os êxitos desportivos não lhe subam à cabeça.
– Sentir-se superior ou mais qualificado que outros colegas.
– Fazer-se notar, presumir ou alardear de proezas, etc.
– Tratar de impôr critérios pessoais, até sabendo que não são os do Sensei.
– Questionar ou discutir os ensinamentos do Sensei ou alardear disso publicamente.
– Subestimar os outros para ser ele superior.
– Criar falta de amisade entre os colegas ou entre as pessoas.
– Falar mal ou criticar otras artes do budô ou seus praticantes.
– Questionar os conhecimentos ou a destreza do Sensei, dos Sempai ou de outros colegas.
– Dar opinião ou criticar acerca dos graus ou cintos concedidos pelo Sensei aos outros estudantes.
– Abusar da confiança do Sensei ou dos outros colegas.
– Ser violento, egoista, orgulhoso, vaidoso ou mal intencionado.
Em resumo, seria muito de desejar que os estudantes se entregassem ao máximo nas aulas, como se sua vida disso dependesse; mas sempre com o domínio físico e emocional que dá o bom senso. Além disso, em todo momento dará atenção a manter à raia as debilidades, defeitos ou tentações que quotidianamente nos espreitam, esperando ver uma abertura no nosso kamae… (guarda), metaforicamente falando.
Outro aspecto, e o mais importante de todos segundo o Mestre Gichin Funakoshi: é que o Karate-dô pode e deve ser praticado durante todo o dia e isto é possível sendo plenamente conscientes de nossos actos em todo momento. Por exemplo: treinando nossa respiração; com a postura corporal correcta; com a nossa atitude com relação aos outros; com a atenção ao meio e, em síntese, enfrentando os problemas quotidianos com espírito de Karate-dô.
3. “Reigisaho”: o protocolo ou cerimonial do Budô
Às vezes, devido ao trato do dia-a-dia, à amisade mal entendida, a um excesso de confiança; ou simplesmente por desconhecimento, o Reigisaho ou normas de conducta no dôjô é mal interpretado e pior utilizado. São exemplos claros disto: não saber comportar-se num tatame, relaxar os modais, não guardar a compostura adequada, falta de pontualidade na aula e falta de seriedade e responsabilidade na prática. Estas más atitudes degeneram numa falta de respeito e de consideração com o Sensei, com os colegas e consigo mesmo. Sendo situações pouco deseáveis que podem derivar em negligência, informalidade e adulteração dos valores do budô. Por isso, os alunos devem entender que, ainda que por vezes o Sensei não lhes chame a atenção directa ou explicitamente, isto não quer dizer que o comportamento incorrecto do estudante passe sem ser visto ou não interesse ao Sensei. Por isso, os Sempais ou estudantes mais avançados devem guiar, aconselhar e corregir os Kohai (principiantes) para que estes não se confundam na atitude. Além disso, deve ensinar-se aos neófitos que após muitos anos de prática é normal que os mais veteranos obtenham pequenos benefícios ou licenças para com o Sensei, ainda que isto supõe também um grande compromisso com ele e obrigações com a prática.
A forma correcta de dirigir-se a um Sensei é inclinar-se respeituosamente ao cumprimentar (rei), o qual ele nos retribuirá solicitamente. Quando ele pergunta se percebemos uma explicação, para responder afirmativamente pronunciamos o vocábulo OSS, o qual serve para: afirmar, saudar, animar, motivar, como agradecimento, etc.
Outro componente importante no reigisaho ou cerimonial do budô, são os cumprimentos (rei); os quais, longe de ser normas de submissão ou sometimento dos estudantes menos avançados, são umas excelentes normas de cortesia, respeito ou agradecimento, e também agem incentivando e favorecendo a atenção e a atitude adequada.
Quando um estudante chega ao limiar da entrada do dôjô (tatame) e a aula ainda não começou, ou seja, sendo pontual, deve cumprimentar na direcção do kamiza, lugar de honra destinado às fotografias dos fundadores da arte ou do estilo, a símbolos e bandeiras, etc. Esta saudação é uma demostração de agradecimento aos fundadores da arte e por sua vez lembra-nos a humildade e simplicidade do estudante. Se a aula já deu começo, situamo-nos num lugar onde o Sensei possa ver-nos, sentados em seiza ou em pé, se é hábito, e esperamos sua autorização para depois realizar o cumprimento ao kamiza e ao Sensei. Após isto, situamo-nos no lugar do dôjô em que menos interrompemos e procedemos a aquecer em silêncio e sem interferir na aula. Uma vez finalizado o aquecimento, dirigimo-nos ao Sensei com a salutação de rigos e integramo-nos na aula.
Existem outros aspectos tais como a jerarquia “Sensei-Sempai-Kohai”. Sempai vem a significar “irmão mais velho no Karate-dô” e sua missão é colaborar com o Sensei, ajudando e aconselhando os mais principiantes na prática da arte. Kohai é indicativo dos alunos principiantes ou de menor grau. Os Sempai são de maior jerarquia conforme sua antigüidade e/ou grau, apesar de pode dar-se o caso de que um Sempai deixe de fazer exames de “dan” por causas alheias à sua vontade ou bem por motivos justificados. Neste caso, se o Sempai continua com uma prática sincera e exigente, terá mais categoria que outros estudantes com menos tempo de prática que tenham sido promovidos mais rapidamente e a mesma que seus contemporâneos ou colegas de promoção. De qualquer maneira, este é um assunto delicado e em caso de dúvidas fica a critério do Sensei.
A disposição nos cumprimentos ou cerimonial: ao começo e no final da aula o Sensei se situa dando de costas para o kamiza, o Sempai de maior jerarquia defrente para o kamiza e à esquerda do Sensei, os outros estudantes a seguir ao Sempai, situados de maior a menor categoria. O Sempai de maior jerarquia é o encarregado de dirigir os cumprimentos ou cerimonial, de velar pela organização das filas e da disciplina geral. Em ausência do “Sempai maior” seu lugar será ocupado pelo seguinte na jerarquia.
Frente ao Kamiza -no lado oposto- encontra-se o Shimoza, lugar reservado para os estudantes, de onde estes cumprimentam o Sensei.
À esquerda do Kamiza encontra-se o Shimoseki ou lado dos alunos de menor categoria, e à direita o Joseki, destinado aos alunos de mais alto grau. Ou seja, para cumprimentar, os alunos situam-se de maior a menor grau, desde o Joseki até o Shimoseki.
Enquanto à atitude nos cumprimentos (rei):
O cumprimento deve ser sincero, pois do contrário seria melhor não o fazer. Ainda que sincero e humilde, o cumprimento não deve estar desprovisto da máxima atenção, já que no budô o nível de alerta nunca desce. Também é um bom hábito que no momento de finalizar um exercício com um colega/s e ao mesmo tempo que realizamos o cumprimento, agradeçamos verbalmente.
Outro aspecto importante a destacar, é que se um Sempai se encontra dando a aula por delegação do Sensei e em ausência deste; no suposto que um Sempai de maior jerarquia se integre na aula, fá-lo-à como um praticante mais, ou então situa-se num lado da sala, praticando sem interferir na aula. Outra questão é que o Sempai ou professor em funções considere mais apropriado oferecer ao Sempai de maior jerarquia a direcção da aula, bem por própria decisão ou por connhecimento das preferências do Sensei. “Mas esta não é uma regra fixa ou uma obrigação”.
4. Justificação da utilização de termos e vozes Japonesas no Karate-dô
Qual o praticante de Karate-dô que não tenha pensado nalguma ocasião: -por que, sendo ocidentais, usamos os termos e vozes Japonesas nas aulas de Karate-dô? Pois bem, na minha opinião este facto pode ter várias razões; a primeira seria por preservar a tradição e continuar mantendo a ordem estabelecida pelos antigos mestres, se bem esta justificação pode não ser convincente para todos. O segundo motivo poderia ser que, utilizando termos que são do desconhecimento dos alunos, o professor adqüiere um misticismo e/ou superioridade mal entendida, fruto de utilizar uma gíria ou uma linguagem desconhecida para o principiante. Coisa semelhante acontece em alguns grémios profissionais, que em posse uma linguagem própria podem mostrar-se inacessíveis, ou simplesmente proteger sua informação. No entanto, quem adoptasse esta conducta cairia por seu próprio peso. E ainda um terceiro argumento, para mim o mais autêntico e convincente, é que o facto de utilizar o vocabulário e vozes Japonesas em Karate-dô, permite que as expressões, términos e vozes desta arte tenham um carácter universal e possam ser compreendidos e utilizados de igual maneira por todos; máxime quando grande parte destas palavras ou vozes têm significado de origem simbólica.
Esclarecimento: Se pedíssemos a um Japonês não praticante de Karate-dô, que nos definisse as palavras bassai-dai, kime, bunkai, etc., certamente não saberia o que dizer ou diria algum absurdo para nós e que não teria nada a ver com o Karate-dô.
Portanto, a utilização dos termos Japoneses tradicionais na prática do Karate-dô em especial, e nas artes marciais em geral, possibilita que Karate-kas de qualquer nacionalidade possam entender-se e praticar em harmonia, sem fronteiras idiomáticas. Da mesma maneira, permite a um Sensei dirigir-se a um grupo de praticantes de diferentes nacionalidades e por meio de uma palavra em Japonês fazer-se entender por todos. Isto é possível porque a palavra em Japonês age no ouvinte como um “símbolo”, do qual os receptores conhecem a definição ou significado em seu próprio idioma; de não ser assim, o Sensei teria que dizer e explicar “a palavra ou conceito” em tantos idiomas como diferentes nacionalidades pudessem existir num curso internacional.
5. Termos e Vozes básicas no Karate-dô.
Vozes utilizadas nos cumprimentos ou cerimonial de Karate-dô:
Mokuso: Concentração, meditação.
Mokuso Yame: Fim da concentração.
Oss: Expressão fonética, formada por dois caracteres. O primeiro “osu” significa literalmente “empurrar” ou “controlar”. O segundo carácter “shinobu” tem o significado literal de «paciência, agüentar, sofrer».
Otagai ni rei: Cumprimento mútuo (entre os alunos).
Ritsu rei: Cumprimento em pé.
Sensei ni rei: Cumprimento ao Mestre.
Sempai ni rei: Cumprimento ao/s Sempai/s.
Somen ni rei: Cumprimento em frente (kamiza).
Tate: Pôr-se em pé.
Zarei: Cumprimento desde Seiza (sentado sobre os calcanhares).
Nota do autor:
Este pequeno artigo não tem outra função que esclarecer alguns aspectos básicos na prática do Karate-dô e, por extensão, a compreensão do Budô em geral. Portanto, não pretende estabelecer um Dogma de Fé, ainda que sim espero que estas linhas orientem no caminho correcto àqueles que se iniciam na prática do Budô, ou bem que sirva como recordatório da atitude adequada para aqueles que, com o passo dos anos, se tenham extraviados, ou ainda que sirva de ajuda àqueles professores que se iniciam no ensino do Karate-dô.
Sem mais, espero que estes simples parágrafos vos façam pensar, pues só a meditação acompanhada da prática far-nos-á compreender a riqueza e profundidade de qualquer Arte do Budô.
Termos mais usuais na
prÁtica de Karate-dô
Bunkai: Aplicação das técnicas e movimentos de um Kata.
Hajime: Começar.
Kamae: Atitude e postura de alerta ou guarda.
Kata: Forma, conjunto de técnicas codificadas.
Kihon: Fundamentos técnicos.
Kihon-kumite: Exercícios de combate, já estabelecidos entre dois karate-kas.
Kumite: Encontro, combate.
Mawate: Rotação, mudança de direcção.
Naore: Recuperar a posição original, pausa ou descanso.
Yame: Parar.
Yoi: Prontos, preparados.
Zanshin: Vigilância; é a ideia de manter um estado de máxima atenção até que realmente pára a acção ou não existe perigo.